Pergunta rápida: entre 2015 e 2019, a pobreza aumentou ou diminuiu? Se você pergunta de um logicista, a resposta é sim. Se você pergunta de economista, a resposta é depende.

A medida de pobreza (monetária) mais conhecida é a taxa de pobreza, cuja interpretação é bastante simples: é o percentual de pessoas que cuja renda é inferior ou igual a uma linha de pobreza. Neste caso, precisamos resolver dois pontos: a definição de renda e da linha de pobreza.

Renda deveria ser uma coisa meio óbvia, não? Á princípio, sim, mas nunca é assim. Por exemplo, a PNADC investiga tanto o rendimento habitual e o rendimento efetivo do trabalho, diferindo em relação a data de referência e parcelas consideradas. Além disso, existem outras fontes de renda, que são investigadas na 1ª e na 5ª entrevista da PNADC. E, ainda assim, existem dificuldades decorrentes da não-resposta (de item e de unidade) e erros de medida. Outro ponto é que esta renda costuma ser ajustada pelo número de moradores1 do domicílio, obtendo a renda domiciliar per capita. As taxas de pobreza calculadas pelo IBGE se baseiam no rendimento domiciliar per capita, definido como a soma do rendimento habitualmente recebido de todos os trabalhos e o rendimento efetivo de outras fontes; vamos seguir este caminho.

Vamos à outra questão central: a definição da linha de pobreza. A linha de pobreza é a nossa referência para considerar um domicílio pobre ou não. Ela pode ser uma referência externa (metade do salário mínimo, US$ 1,90/dia, etc.) ou uma referência interna (60% da média ou da mediana2 da renda), por exemplo. No Brasil, a gente tem o hábito de considerar metade do salário mínimo como um valor de referência para a pobreza. Existem vantagens e desvantagens nessa abordagem. Em termos nominais, o salário mínimo é um valor de referência usado no Brasil inteiro para contratos de trabalho (formais). Por outro lado, ele muda à cada ano, o que dificulta a comparação da taxa de pobreza de anos diferentes.

Mas por que as pessoas continuam usam o salário mínimo como valor de referência? Eu não sei exatamente, mas acho que isso tem um (quase) fundamento legal. O art. 7º, IV da CF/88 estabelece o seguinte:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

Ou seja: legalmente, o salário mínimo deveria ser um valor capaz de suprir as necessidades básicas vitais do indivíduo e sua família, em várias dimensões. O salário mínimo de 20193 era R$ 998,00 e supostamente deveria satisfazer essas necessidades. Ainda sobre 2019, o DIEESE calculou que, para satisfazer estas condições, o salário mínimo deveria ser por volta de R$ 4.000,00.

Definições deste post

Nas análises a seguir, deflacionamos usaremos as seguintes definições:

  • Medida de pobreza: taxa de pobreza;
  • Renda: rendimento habitual de todos os trabalhos e efetivos de outras fontes, em valores médios de 2019;
  • Renda domiciliar per capita: soma da renda dos moradores do domicílio dividido pelo número de moradores;
  • Linha de pobreza: R$ 500,00 (aproximadamente meio salário mínimo de 2019).

Todos de acordo? Nunca. A definição de pobreza é sempre algo controverso. E tem que ser: a tecnocracia econômica de uma taxa de pobreza (monetária) esconde inúmeras discussões. E isso é particularmente importante para populações que são excluídas dos processos decisórios. Por exemplo: qual o sentido da pobreza monetária em populações que se baseiam em trocas? Quanto do autoconsumo é realmente captado? E as outras dimensões não-monetárias da existência? Além disso, os recortes sobre o que é uma privação é algo que varia de acordo com a comunidade.

Mas essa é uma discussão enorme e que não cabe nem em um livro, muito menos em um post.

Como sempre, cabe o aviso:

Todos as estimativas a seguir foram feitas por mim.
Assim, nem IBGE, nem qualquer outra instituição tem nada a ver com os meus comentários ou conclusões.

Entre 2015 e 2019, a pobreza aumentou ou diminui?

A resposta dessa pergunta é complicada. A Tabela 1 apresenta as estimativas da taxa de pobreza de 2015 e 2019 e sua diferença. Como a linha de pobreza é de R$ 500, estas estimativas da taxas de pobreza podem ser vistas como a proporção de pessoas vivendo em domicílios cuja renda domiciliar per capita é menor ou igual a R$ 500 em cada ano. A estimativa de aumento da taxa de pobreza entre 2015 e 2019 é de 0,19%, mas não é estatisticamente significativa ao nível de 95%. Então, não podemos dizer que a pobreza aumentou ou diminuiu no período: há uma boa chance que o aumento estimado pode ser apenas erro amostral.

Table 1: Taxa de Pobreza (%, Linha de Pobreza R$ 500) - Brasil, 2015 e 2019.
IC (95%)
Estimativa L. Inferior L. Superior
2015 29,69 29,16 30,22
2019 30,08 29,54 30,62
Diferença 0,39 -0,35 1,12
Fonte: PNAD Contínua 2015 e 2019, Microdados.
Nota: 1 Rendimento domiciliar per capita em valores médios de 2019.

E quanto à pobreza extrema? A Tabela 2 apresenta as estimativas da taxa de pobreza de 2015 e 2019 e sua diferença, considerando uma linha de pobreza de R$ 100. Nesse caso, a estimativa da taxa de pobreza extrema foi de 2,15% em 2015 para 3,43% em 2019. O aumento estimado neste intervalo é de 1,28%, sendo estatisticamente diferente de zero.4

Table 2: Taxa de Pobreza (%, Linha de Pobreza R$ 100) - Brasil, 2015 e 2019.
IC (95%)
Estimativa L. Inferior L. Superior
2015 2,24 2,12 2,36
2019 3,59 3,43 3,75
Diferença 1,35 1,15 1,55
Fonte: PNAD Contínua 2015 e 2019, Microdados.
Nota: 1 Rendimento domiciliar per capita em valores médios de 2019.

Ou seja: dependendo da linha de pobreza adotada, a taxa de pobreza pode ter aumentado ou diminuído!

Para avaliar o quão robusto é o ordenamento, costuma-se avaliar a função de distribuição acumulada (FDA) da renda domiciliar per capita. O Gráfico 1 mostra as estimativas das FDAs da renda domiciliar per capita em 2015 e 2019. A FDA tem uma interpretação muito interessante neste caso: cada linha de pobreza dada no eixo \(x\) é associada à uma taxa de pobreza no eixo \(y\), permitindo avaliar várias opções de linha de pobreza em um único gráfico.

Funções de Distribuição Acumulada da renda domiciliar per capita - Brasil, 2014 e 2019.

Figure 1: Funções de Distribuição Acumulada da renda domiciliar per capita - Brasil, 2014 e 2019.

A comparação de duas FDAs é a ferramenta central da análise de dominância de pobreza. Quando uma FDA é maior ou igual à outra para toda linha de pobreza em um dado intervalo, dizemos que há dominância de pobreza. Isso significa que uma população é pelo menos tão pobre quanto a outra para todas as linhas de pobreza inferiores a um dado valor. No caso do Gráfico 1, isso significa que, em relação à todas as linhas de pobreza menores que (aproximadamente) R$ 450, havia mais pobreza em 2019 do que em 2015. Se considerarmos que a inversão próxima aos R$ 500 pode ser decorrente do erro amostral, pode ser que a dominância se estenda para linhas de pobreza maiores.

Assim, embora não se saiba ao certo sobre a significância estatística deste ordenamento na curva como um todo, é razoável afirmar que há indícios fortes do aumento da pobreza para boa parte do conjunto de linhas de pobreza.


  1. Morador de um domicílio também é um conceito com sutilezas.↩︎

  2. Ou outro quantil↩︎

  3. Compilado mais recente da primeira visita da PNADC disponível na data deste post.↩︎

  4. O ideal seria testar se a diferença é maior que zero, mas ainda não escrevi o código para isso.↩︎